Pesquisar este blog

Para todos.

Entre. Fique à vontade.
Você tem aqui um espaço pra consulta, pra estudo, pra questionamentos e pra trocas. Faça perguntas, se quiser, ou insira comentários.
Para procurar um assunto específico, faça uma busca nos marcadores.

A Literatura é um espaço para reflexão.

Quanto mais evocarmos a musa, mais presente ela se faz.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

ARCADISMO

 Arcadismo (1756-1825)


Pastoral do Outono.

 

 O século das luzes, como foi denominado, contrário aos exageros do Barroco, combateu a mentalidade religiosa imposta pela Contrarreforma e retomou a cultura renascentista, propondo uma arte mais equilibrada, baseada na razão e cuja temática voltava-se para a vida simples, cultivada longe dos grandes centros urbanos.

 

 Contexto social e histórico

 O século XVIII foi marcado por mudanças bastante significativas, tanto no âmbito político quanto no científico e cultural. É dessa época o movimento intelectual denominado Iluminismo, que se iniciou na Inglaterra mas teve seu apogeu na Revolução Francesa. O lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” ficaria marcado para sempre na história da humanidade.

 Os filósofos dessa época, como Diderot, Voltaire e Rousseau, acreditavam que a razão era a única fonte de conhecimento da natureza e da sociedade. A igreja e a religião eram vistas como instrumentos de ignorância.

 O iluminismo respondia às ideologias da burguesia em ascensão que criticava o Absolutismo do Estado.

 Portugal se encontrava muito aquém do desenvolvimento político, econômico e cultural do restante da Europa. Havia no país um despotismo, com o rei interpretando as leis conforme seus interesses. O monarca da época era D. José I (pai do futuro D.João VI), mas o grande articulador político foi o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho), primeiro ministro do rei, que organizou a intervenção do Estado na Educação, proibindo o ensino dos jesuítas e os expulsando do país e das colônias. Ele efetuou diversas reformas políticas e culturais, imbuído dos ideais iluministas.

 Em 1755, Lisboa sofreu um grande terremoto, sendo metade da cidade reconstruída por Pombal, com uma visão mais racionalista e neoclássica.


A produção literária

 Didaticamente, considera-se que o Arcadismo em Portugal inicia-se em 1756, quando foi fundada a Arcádia Lusitana, uma sociedade literária na qual vários poetas se reuniam para recitarem poemas e discutirem sobre a estética árcade.

 Segundo a definição do dicionário Houaiss: arcádia: designação comum às sociedades literárias dos séculos XVII-XVIII que cultivavam o classicismo e cujos membros adotavam nomes de pastores na simbologia poética. A etimologia da palavra apresenta: Arkadìa,ae 'província do Peloponeso', adaptado do grego Arkadía 'região do Peloponeso, região de pastores dados à música e à poesia'.

 Por resgatar a imitação dos clássicos gregos e romanos, esse movimento é também denominado de Neoclassicismo. Juntamente com o Classicismo e o Barroco, o Arcadismo compõe o período que denominamos de Clássico.

 A literatura árcade representa uma crítica da burguesia letrada e culta ao estilo de vida da nobreza e do clero.

 

Características

 No período árcade, segue-se o conceito aristotélico de arte, isto é, a arte como imitação da Natureza, o racionalismo, expresso pela busca constante pelo equilíbrio e pela perfeição, vemos também a presença de             temas bucólicos, ligados à natureza e à tranquilidade rural.

Em Portugal, foram duas as principais academias árcades: a Arcádia Lusitana (1756) e a Nova Arcádia (1790).

Essas características retomam os temas clássicos, considerados clichês árcades, tais como:

§  fugere urbem: “fuga da cidade”, pois a felicidade só existe no campo;

§  aurea mediocritas: “lugar da mediocridade”, cultua-se uma vida simples e equilibrada;

§  locus amoenus: “lugar ameno”, no campo, um lugar que propicie os encontros amorosos;

§  inutilia truncat: “cortar o inútil”, acabando com os excessos barrocos na linguagem.

 Somado a essas características, o convencionalismo amoroso aparece sob a forma de pastoralismo, pois o eu lírico se coloca como pastor de ovelhas e suas amadas são pastoras. Para isso, usam pseudônimos que remontam à antiguidade clássica: Marília, Elmano.

 Podemos citar alguns poetas árcades relevantes como Nicolau Tolentino de Almeida, poeta satírico e Filinto Elísio. Contudo, aquele que mais se destacou foi o grande sonetista Manuel Maria Barbosa du Bocage.

 

Manuel Maria Barbosa de Bocage (1765-1805)

Bocage nasceu em Setúbal, Portugal. Teve uma vida cheia de aventuras e boemia, entre bares e recitais poéticos. Pertenceu à Nova Arcádia, na qual era conhecido pelo pseudônimo de Elmano Sadino. Contudo, era um rebelde e logo abandonou o grupo, cujo estilo atacou. Escreveu poemas satíricos que chegaram a fazer com que o poeta fosse preso. Faleceu pobre e doente. As suas obras tiveram várias edições ainda em vida: Rimas, tomo I (1791), Rimas, tomo II (1799) e Rimas, tomo III (1804). Em 1811, foram publicadas as Obras Completas no Rio de Janeiro. Ficaram famosos os seus Sonetos, os seus Epigramas e os seus Apólogos.

 Sua obra pode ser dividida da seguinte maneira:

 §  poesia erótico-satírica: linguagem obscena e agressiva;

§  poesia lírica:

 Podemos notar a obra de Bocage distintamente em duas fases. Na primeira fase o poeta mostra obediência aos clichês árcades, em contrapartida a segunda fase é marcada pela dissidência com o Arcadismo e aproximação com o Romantismo, ao que os críticos chamam de Bocage pré romântico. Entre os temas mais explorados por Bocage, podemos destacar: o amor, a morte, o destino, a natureza e o conflito entre a razão e o sentimento.

 Há também um Bocage que se faz notório em sua produção de versos fesceninos e eróticos, de verve mordaz e língua ferina. Entretanto, alguns poemas de cunho erótico e pornográfico que levam o nome de Bocage não são de sua autoria.

 Veja a seguir um exemplo de um poema satírico de Bocage, no qual o poeta faz um autorretrato bem humorado.

  

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno;

 

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura;

Bebendo em níveas mãos, por taça escura,

De zelos infernais letal veneno;

 

Devoto incensador de mil deidades

(Digo, de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades,

 

Eis Bocage em quem luz algum talento;

Saíram dele mesmo estas verdades,

Num dia em que se achou mais pachorrento.[4]

 

Vocabulário:

assistir: no sentido de morar

pachorrento: cheio de pachorra, sem pressa, calmo.

 Podemos observar nesses versos como o poeta confessa sua vida boêmia, cheia de prazeres, seu espírito inquieto e certo repúdio à religião. Era considerado um homem bonito.

 

Neste outro exemplo, temos um poema lírico da primeira fase:

 

Ó tranças, de que Amor prisão me tece,

Ó mãos de neve, que regeis meu fado!

Ó Tesouro! ó mistério! ó par sagrado,

Onde o menino alígero adormece!

 

Ó ledos olhos, cuja luz parece

Tênue raio do sol! Ó gesto amado,

De rosas e açucenas semeado

Por quem morrera esta alma, se pudesse!

 

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,

E por cujos dulcíssimos favores

Talvez o próprio Júpiter suspira!

 

Ó perfeições! Ó dons encantadores!

De quem sois?... Sois de Vênus? –

É mentira; Sóis de Marília, sois de meus amores.

 

Vocabulário:

alígero: que tem asas, é veloz

ledo: que revela ou sente felicidade, alegre

açucenas: flores

 

Neste soneto, podemos observar as seguintes características árcades:

 §     pastoralismo: a amada é uma pastora, cujo nome percebe-se pelo vocativo “Marília”;

§     referências à mitologia greco-latina: “Vênus”, “Júpiter” e cupido, por meio do epíteto “menino alígero;

§     busca do equilíbrio e da perfeição por meio do uso do soneto e da descrição da bela mulher: “Ó perfeições! Ó dons encantadores!”.

Vejamos agora, aluno, um exemplo do lirismo da segunda fase, ou da fase pré-romântica:

 

Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel de paixões, que me arrastava;

Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava

Em mim quase imortal a essência humana.

 

De que inúmeros sóis a mente ufana

Existência falaz me não doirava!

Mas eis sucumbe a Natureza escrava

Ao mal que a vida em sua origem dana.

 

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos.

 

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos.

Saiba morrer o que viver não soube.

 

Vocabulário:

lida: labuta, trabalho, no sentido de vida

falaz: que ilude

  

Este soneto, ainda de concepções clássicas, revela a lírica pessimista que exemplifica a fase madura do poeta, cuja temática antecipa o ideário romântico do mal do século, marcado por religiosidade e temas tristes.

 Aqui, como em outros sonetos dessa fase de Bocage, o uso da razão e do universalismo dá lugar à emoção e a subjetividade, como podemos ver nas expressões “meu ser”, “em mim”.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

A geração de 45: Guimarães Rosa


Natural de Cordisburgo, Minas Gerais, João Guimarães Rosa é considerado um dos ícones da prosa ficcional brasileira. O livro de estreia, Sagarana, publicado em 1946, alcançou grande sucesso de crítica e público.
Em 1956, Guimarães Rosa viria a surpreender crítica e público ao lançar em um espaço de aproximadamente seis meses dois livros: Corpo de baile, um conjunto de novelas publicado inicialmente em dois volumes que hoje é desmembrado em três – a novela mais conhecida do grande público é “Campo Geral”, narrativa da infância do garoto Miguilim – e o surpreendente romance Grande sertão: veredas. Completam a obra de Rosa Primeiras estórias, Tutaméia e Ave Palavra.    
A obra de Rosa bebe nas fontes da cultura popular. Homem de inteligência elevada, suas narrativas enlaçam o popular a erudição.
Assim como Clarice Lispector, desenvolve complexo trabalho de elaboração com a linguagem. O crítico literário Alfredo Bosi, afirma que em Guimarães Rosa “A palavra é um feixe de significações”, por si só portadora de sons e de formas e o autor busca abolir as fronteiras entre a narrativa e a lírica, construindo, em seus textos, um pensamento analógico e mítico.
Seus personagens encerram certo panteísmo, e a natureza implica no movimento entre os opostos complementares, encerrando em si mesma o Bem e o Mal, que se fundem em uma só realidade, e muitas vezes em um só corpo. Tudo, até mesmo aquilo que se opõe, aparentemente partilha de algo maior e infinitamente mutável: o devir.
O outro é sempre o desconhecido, o avesso, “os crespos do homem”, com quem o sujeito estabelece relações dialéticas que se manifestam por meio dos modos pré-lógicos tais como mito, psique, infância, sonho ou loucura.
O que aparece em Rosa poderia ser chamado de regionalismo introspectivo ou espiritualismo com roupagem sertaneja, mas o mais importante está no fato de que o autor cria uma dicotomia cosmopolita X regionalismo, ao se valer de uma linguagem arcaizante, preservada no interior de Minas.
O fato é que Guimarães Rosa tem a região como personagem e o homem como paisagem, por isso a temática batida desde o regionalismo de 1930 não se torna enfadonha. Na ficção comum o homem é engolido pela paisagem, mas em Rosa a essência do homem passa a ser sua multiplicidade e ambigüidade, e o espaço se comporta da mesma forma, pois em Rosa a paisagem é instável, mutante, refletindo a dinamicidade do mundo, e a linguagem precisa acompanhar isto.
Vejamos algumas das características da obra rosiana, no gênero conto, em uma de suas melhores obras: Primeiras Estórias.
Em Primeiras Estórias, o autor põe em cena seres rústicos, que são tocados pela iluminação, o que faz com que seus conflitos percam a importância, característica que já se via em Sagarana. Não raro os personagens, seres comuns por fora, mas que se revelam uma caixa de pandora, vêem-se envolvidos pela busca da transcendência, como no conto A terceira margem do rio, em que o autor resgata a imagem de permanência no fluir eterno do rio.

Percebe-se também o reconhecimento do amor como o inefável, que muitas vezes é ofuscado pelo diário da vida.
Em muitas situações a palavra é tomada como o significante motor, como no conto Famigerado, que possui estrutura de adivinha invertida, pois quem questiona não sabe a resposta e aquele que deve “adivinhar” certamente sabe, embora tema falar, o que implica em uma inversão de lugares. Também é essa mesma temática que encontramos em A menina de lá, mas aqui a palavra possui poder numinoso, de presentificação e atualização.

Veja o vídeo acerca do conto A Terceira Margem do Rio, da Profª Yudith Rosembaum

quinta-feira, 4 de abril de 2013

a poesia de 30: Drummond

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


Nascido numa pequena cidade de Minas Gerais, Itabira do Mato Dentro, Carlos Drummond de Andrade tem uma importante contribuição para a renovação e para a consolidação das propostas iniciais do Modernismo. Em 1920, conhece Oswald de Andrade, Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade, que visitavam Belo Horizonte. A partir desse contato, começa a se corresponder com Mário de Andrade, mantendo vivo esse hábito durante toda a vida do escritor paulista.
      Testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, no que se mostra satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se à comunicação estética.
Sua principal característica é saber aliar extrema sensibilidade a uma inteligência e um humor únicos, por meio de composições que privilegiam a linguagem coloquial. Outra característica marcante em Drummond é o modo como a temática das desigualdades sociais e o retrato das aspirações e angústias cotidianas fazem parceira com um lirismo profundo.


Veja o poema Sentimento do Mundo.

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.


O poeta se revela limitado e impotente diante do mundo ("tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo"), embora "cheio de escravos".
O poema pode ser entendido, também, como um poema metalinguístico, isto é, um poema sobre o próprio fazer literário ("minhas lembranças escorrem"), onde os poemas ("escravos") surgem como armas ("havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento") resultantes do "sentimento do mundo" do qual o poeta se conscientiza a partir dessa obra.
Sua visão acerca do mundo é extremamente pessimista, como podemos constatar no último  verso, com um "amanhecer mais noite que a noite". 

Graciliano Ramos, olhares sobre o sertão nordestino


Graciliano Ramos (1892-1953)



Considerado, por boa parte dos críticos, como um dos melhores romancistas do nosso Modernismo, apresentando soluções estéticas diferentes para o gênero da prosa. Sua principal característica é expor ao limite as tensões que o ambiente e/ou a sociedade impõem ao homem, ora brutalizando-o, ora explorando-o, mas deixando evidente que o conflito gerado por essas tensões é intenso a ponto de transformar o homem, moldar personalidades. Por isso a morte é uma constante em suas obras como final trágico e irreversível.
      Segundo Antonio Candido no romance Vidas secas (1938), encontramos um exemplo de condições de existência que moldam os modos de ser de cada indivíduo, dificultando a compreensão da realidade. Nota-se, nesse romance, a necessidade do autor de depor e denunciar a realidade.
O regionalismo é atípico, pois apesar de nos apresentar um cenário regional, parece mostrar mais do que a luta pela sobrevivência. Por isso o autor vale-se de personagens oprimidos e moldados pelo meio, isto é, o “herói problemático”, que se mostra em conflito com o meio e consigo mesmo, em luta constante para adaptar-se e sobreviver, insatisfeitos e irrealizados.

Esse aspecto é notado logo no início de Vidas secas, quando o autor refere-se aos personagens como viventes, e ao longo da narrativa, quando os viventes passam a ser denominados apenas por uma palavra que se repete em toda a sua obra: bicho.

Vidas Secas – Graciliano Ramos

"Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos - e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar . E, pensando bem, ele não era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.
Isso para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

Vale a pena repetir aqui a observação feita por Abdala, em Tempos da Literatura Brasileira, com que faz notar a “relação dialética entre o estilo direto[1], como: “ – Fabiano, você é um homem”, o indireto, como: “Conteve-se, notou que os meninos estavam perto”, e o indireto livre, como: “Com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só”. No indireto livre, o narrador de Vidas Secas interiorizou-se na personagem Fabiano”[2] deixando evidente como o autor faz fundir as duas vozes.
Assim, a cena cruel da família de retirantes, vagando exaustos pelo sol, silenciosos e tristes, é acompanhada não pela solidariedade do autor, mas também por nós, leitores.
Valendo-se de uma linguagem sintética e concisa, dotada de lentidão, a narrativa esboça a dificuldade de se seguir por esse espaço inóspito, em que a seca ao redor do homem representa a secura de sua própria vida, humilhada e sem perspectivas.
O romance que surge na década de 30 não crê na possibilidade de uma transformação positiva do país através da modernização. Em São Bernardo, de Graciliano Ramos, encontramos uma expressão detalhada dessa descrença. Paulo Honório, de São Bernardo, que foi guia de cego e trabalhador de enxada, e que consegue, com violência e determinação, conquistar não a fazenda de São Bernardo como respeito, dinheiro e prestígio, virando um coronel, dá mostras, no final do romance, dessa visão pessimista do autor em relação à realidade:

Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei...”.

“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”
Graciliano Ramos tinha obsessão pelo texto enxuto e limpo. Veja o dizia o escritor sobre isso no site oficial do escritor <http://www.graciliano.com.br>.



[1] Grifos nossos.
[2] ABDALA Jr., Benjamin e Campedelli, Samira Youssef. Tempos da Literatura Brasileira. Série fundamentos. Ed. Ática, 2004, pg. 268.

Modernismo: a geração de 30

A segunda fase do Modernismo

     
O Modernismo desdobrou-se em novas manifestações na década de 1930, prolongando-se até meados da década seguinte.
Presenciou-se momentos de importantes transformações na sociedade, marcados pela modernização social do período entre guerras, fruto do crescimento industrial. Enquanto as mudanças nos setores comercial e financeiro faziam com que o país deixasse de ter um perfil econômico agrícola.
A Revolução de 1930 marca o fim da primeira República, com um golpe que coloca Getúlio Vargas na presidência e tira de cena a supremacia política de São Paulo e Minas Gerais. Em 1932, um movimento armado tenta destituir Getúlio do poder, mas é derrotado. Três anos depois, a tentativa de um golpe de estado, conhecido como a “Intentona Comunista”, é reprimido pelo governo de Getúlio, que passa a perseguir os comunistas. Essa perseguição resulta na instituição do regime do Estado Novo (1937 – 1945), que instaura no Brasil o totalitarismo, já presente na Europa de Hitler e Mussolini.
A partir desse quadro coloca-se a necessidade de repensar a realidade brasileira, repleta de conflitos. Esses novos fatos moveram os rumos do processo artístico em direção a uma prosa menos preocupada com os experimentalismos estéticos da primeira geração e mais preocupada com os problemas da realidade brasileira.
Assim, o grande tema da segunda geração modernista é a análise do ser humano e de suas angústias, reflexo da vida em uma sociedade em crise, que resulta num processo de amadurecimento e embrutecimento. O que se observava no Brasil e no mundo no início da década de 30 exigia que os artistas e intelectuais tomassem um posição mais engajada, de clara militância política.


O romance de 30


A prosa vai assumir contornos neorrealistas, retratando a realidade e conscientizando leitores. Aparece a vertente regionalista da prosa, que busca retratar as regiões marginalizadas do Brasil, fazendo surgir a figura do fracassado, uma das maiores conquistas do romance da geração de 30 para a ficção brasileira: a incorporação das figuras marginais.
Esses escritores voltam-se para os problemas de sua realidade imediata, e a literatura regional é caracterizada pela denúncia social. Assim, a seca torna-se um dos temas mais importantes da literatura desse momento. Foi José Américo de Almeida em A bagaceira (1928), que primeiro abordou o tema que mais tarde passou a ser explorado por muitos outros autores, como Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.
Em contrapartida temos também o aparecimento de romances intimistas, uma narrativa mais subjetiva em que se aborda o interior dos indivíduos, que se mostram angustiados em relação a essa realidade esgarçada. Essa prosa tenta se aproximar mais das relações conflituosas entre o homem e o mundo e como elas são processadas por esse mesmo homem em seu interior, a esse romance damos o nome de romances psicológicos.
Esse momento do modernismo é nomeado pela crítica literária como a era do romance, e desenvolve uma prosa marcada por uma rudeza linguística e pela captação direta dos fatos, aliada a retomada do naturalismo, que dá ao romance característica de documento.
Em sua obra História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi apresenta os estudos acerca das tendências romanescas feitos por Lucien Goldmann, George Lukács e por René Girard. Vale a pena conferir o que o autor nos revela sobre os estudos dos teóricos do gênero do romance.
Esses estudos mostram o romance como uma tensão entre escritor e sociedade, portanto inevitavelmente uma oposição entre o ego, na figura do herói, e a sociedade.
A partir desses estudos, o herói pode ser encarado da seguinte maneira:

1.    O herói que empreende uma busca por seus valores pessoais e o meio lhe é hostil;
2.    O herói que se fecha na memória ou nos próprios estados da alma;
3.    O herói que simplesmente limita-se a aprender a viver no difícil mundo em que foi lançado.

O que se observa é a ruptura entre o herói e o grupo, oposição que se remonta à dicotomia homem natural/homem social, evidenciando, assim, a tensão como a única forma de relacionamento do autor/homem com o mundo.
Segundo Goldman, é justamente nessa tensão que se fundamenta o romance moderno, isto é, na tensão entre o herói e o seu mundo. Dessa forma o autor divide as tensões, e os romances, da seguinte forma:

1.    Romances de tensão mínima, cujos conflitos são simples e sentimentais, recheando a narrativa com apelo histórico e espacial. Vale-se de uma verossimilhança neorrealista.

2.    Romances de tensão crítica, cujo herói opõe-se às pressões da natureza e do meio social. Essas narrativas revelam as lesões produzidas pela sociedade. Aqui é comum que se ultrapasse o tipo, valorizando-se o indivíduo protagonista, por meio do qual cria-se a atmosfera, isto é, abandona-se o tempo objetivo pela duração psíquica.

3.      Romances de tensão interiorizada, nos quais o herói não se sente capaz de enfrentar a antinomia eu/mundo e evade-se, isto é, subjetiva o conflito por meio de uma transformação psíquica da realidade. Dessa forma, o herói ultrapassa seu conflito existencial. São os chamados romances do ego, ou romances psicológicos, que revelam a cisão homem/mundo e o retorno ao próprio sujeito, na tentativa de construir uma outra realidade, o que é preferível a enfrentá-la.

São essas as estruturas narrativas cultivadas pela geração de 30 e é por meio das obras de autores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, que vemos despontar um Brasil multifacetado, que apresenta uma diversidade regional e cultural, ao mesmo tempo que apresenta problemas comuns em quase todas as regiões, tais como a miséria, a ignorância, a opressão nas relações de trabalho, as forças atávicas da natureza sobre o homem desprotegido. Problemas que esgarçam o interior desse homem do século XX e resvalam para as tensões retratadas nos romances.

domingo, 3 de março de 2013

Semana de Arte Moderna e a primeira fase do Modernismo no Brasil

A semana de Arte Moderna de 1922 e o Modernismo no Brasil

 cartaz da Semana de Arte Moderna

Desde 1912, quando Oswald de Andrade volta de sua viagem à Europa, as ideias vanguardistas têm sido disseminadas e deglutidas em terras tupiniquins.
Os artistas brasileiros que “idealizaram” a Semana de Arte Moderna, buscavam a ruptura com os valores artísticos tradicionais somada às técnicas e meios de expressão capazes de traduzir a nova realidade do século XX, além da construção da identidade nacional, isto é, a constituição de uma arte que representasse o Brasil.
A Semana de Arte Moderna aconteceu durante os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Cada dia da Semana foi dedicado a um tema: pintura e escultura, poesia e literatura e, por fim, música. Apesar de ser conhecida como a Semana da Arte Moderna, as exposições aconteceram somente nesses três dias.

A primeira fase


Na primeira fase são afirmados os pressupostos estéticos do movimento, conforme Mário de Andrade elencaria em 1942, em O movimento modernista:
1) “o direito permanente à pesquisa estética”;
2) “a atualização da inteligência brasileira”;
3) “a estabilização de uma consciência criadora nacional”.

O ponto comum que reúne os escritores da primeira fase do Modernismo no Brasil é a abordagem crítica e nacionalista da realidade brasileira, na tentativa de reerguer a cultura brasileira e eliminar o complexo de colonizado.
Aqui encontramos uma literatura que se guiava por manifestos, como na literatura vanguardista. Esses manifestos interessam-nos à medida que constroem um texto que expõe as características literárias do movimento.
No Prefácio Interessantíssimo, que encabeça o livro Pauliceia Desvairada, de 1922, Mário de Andrade constrói seu manifesto revelando os pontos de contato da literatura moderna brasileira e as vanguardas, embora adote uma postura de irreverência absoluta.
Vejamos um trecho do texto e como suas ideias são diretivas, pois mostram tudo o que se quer para a literatura moderna que começa a se erigir e tudo o que não se quer.
Prefácio, expressa o difícil compromisso de conjugar a orientação moderna à realidade local, à "língua brasileira". Anunciando o "desvairismo" – a incongruência, a extravagância, a excentricidade – firma sua resistência em relação às doutrinas artísticas: "Em arte: escola = imbecilidade de muitos para a vaidade de um só". O texto é repleto de um posicionamento de subjetividade extremada, assumindo assim a ruptura com o clássico.

Prefácio Interessantíssimo[1] (Excerto)
“Dans mon pays de fiel et d’or j’en suis la loi” (E. Verhaeren)
Leitor:  
Está fundado o Desvairismo.

Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão o prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para que me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
E desculpem-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.
Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiram minhas idéias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizaram meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como indiferente de Watteau. 
Um pouco de teoria?

Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada.
A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisa-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos.
Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como sonho. Por ele vida e sonho se irmanaram. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão. 
"O vento senta no ombro das tuas velas" Shakespeare. Homero já escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.

Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório - questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural - tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir a natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis de Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria), foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico, tanto mais subjetivos quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa
O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo que esta dissesse: "Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!" A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o impotente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações. Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embricá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas, não convencionais como a Arte, são verdades. [...]
 Escrevo brasileiro. Si uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.

Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras freqüentam-me o livro é porque pense com elas escrever moderna, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.
Mas todo este prefácio, com todo a disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi "Paulicéia Desvairada" não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu vivo! 
Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se Quem não souber cantar não leia Paisagem nº 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar: A Escalada. Sofre: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.

E está acabada a escola poética "Desvairismo".
Próximo livro fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola=imbecilidade de muitos para vaidade dum só.
Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. "Toda canção de liberdade vem do cárcere".

No Manifesto Pau-Brasil, 18 de março de 1924, Oswald de Andrade ironiza e critica a visão oficial da história brasileira, contrapondo-a a uma visão paródica e bem-humorada. Faz apologia à literatura e, sobretudo, à poesia brasileira que agora deve ser considerada de exportação. Leiamos um trecho:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária. Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram. A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia. A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars : - Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
Nãoluta na terra de vocações acadêmicas. Há fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta - a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.

 Já em 1928, Oswald lança o Manifesto Antropófago, uma resposta ao nacionalismo do grupo Anta, que propõe a devoração cultural da literatura e das técnicas literárias importadas, sobretudo da Europa, para que se possa absorver suas qualidades, tal qual nos rituais antropofágicos indígenas.

a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupy, or not tupy that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. [...]
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. [...]
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. [...]
 Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. [...]
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
A alegria é a prova dos nove.
No matriarcado de Pindorama.
Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
[...]Porém, as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. [...]É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
Oswald de Andrade 
Em Piratininga 
Ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha.


Revista de Antropofagia (São Paulo), n.1, ano 1, maio de 1928.


Como podemos observar, a marca dessa primeira fase é a dicotomia integradora, pois contém simultaneamente o desejo e o projeto formal inovador ao lado da proposta de resgate dos elementos da cultura tradicional. Concilia linguagens importadas das vanguardas modernistas europeias, com um conteúdo nativista que resgata as raízes culturais brasileiras.

Mário de Andrade (1893-1945)


Um dos criadores do Modernismo no Brasil, Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, cidade que retratou em vários textos. Músico formado pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde também lecionou. Aos vinte anos , com o pseudônimo de Mário Sobral, publicou seu primeiro livro, Há uma gota de sangue em cada poema, no qual fazia críticas à carnificina da Primeira Guerra Mundial e defendia a paz. Alguns meses após a Semana de 22, publicou Paulicéia desvairada, que incluía a discussão teórica sobre a poesia, “Prefácio Interessantíssimo”, tão importante quanto as poesias do livro-texto teórico sobre a modernista.
Na prosa, Mário produziu um dos mais importantes romances da literatura brasileira do século XX: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, publicado em 1928. O romance redefine a figura do herói e do brasileiro, pela marca do indefinível.
Também produziu o romance Amar, verbo intransitivo, que causou grande impacto à época ao tratar da iniciação sexual de um adolescente, cujo pai contrata uma governanta com esta finalidade, a de iniciar sexualmente o filho. Nessa obra retrata a vida burguesa na grande São Paulo.
A ficção de Mário de Andrade também revela uma preocupação com técnicas vanguardistas e incorpora à sua linguagem expressões idiomáticas, extraídas das diversas incursões pelo interior do Brasil, o que confere a sua obra originalidade e define sua empresa por uma língua brasileira.
Macunaíma, a que Mario de Andrade chamou rapsódia, e não romance, pois foi construído através de colagens de músicas, cantigas, lendas e ditos populares, ou seja, uma composição feita pelo processo de justaposição. Segundo informa João Luiz de Lafetá, "a rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, foi escrita por Mário de Andrade, na sua primeira versão, em alguns poucos dias do mês de dezembro de 1926”. O livro seria editado em 1928, depois de quatro redações, segundo carta ao crítico Tristão de Ataíde, o que se deve aos longos estudos sobre mitologia indígena e sobre o folclore nacional, realizados pelo escritor durante vários anos, além de profundas observações sobre os costumes e a língua cotidiana dos brasileiros.
Seu personagem, Macunaíma, já existia em lenda ameríndia coletada pelo alemão Theodor Koch-Grünberg em Vom Roraima zum Orinoco. Esse personagem é um esboço do perfil do brasileiro comum, com seus defeitos e virtudes, passando inclusive pelas três etnias que compõem a formação da sociedade brasileira, a saber: o índio, o negro e o branco e por ser a maior obra em prosa da primeira fase, trataremos dela aqui com maior cuidado.
Leia agora, aluno, um trecho do início da obra.

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

      Para Haroldo de Campos, o livro é uma "história de busca" e se compõe de dois grandes movimentos. No primeiro, temos a "situação inicial", em que são apresentados o herói Macunaíma, sua mãe e seus irmãos, Maanape e Jiguê, índios tapanhumas, vivendo às margens do rio Uraricoera. Mas a maior parte do livro se passa em São Paulo, e é constituída pelos diversos embates de Macunaíma com Venceslau Pietro Pietra. No final desse primeiro movimento, de acordo com a divisão proposta por Haroldo de Campos, Macunaíma consegue matar o gigante e recuperar o amuleto, partindo de volta para o Uraricoera.
O segundo movimento relata o antagonismo entre Macunaíma e Vei, a deusa-sol, que oferecera ao herói uma das suas três filhas em casamento. Macunaíma, entretanto, enamora-se de outra, perdendo a possibilidade de casamento e aliança com Vei. Como o próprio Mário de Andrade explicou, é uma alegoria dos destinos do Brasil, que abandonara as possibilidades de construir uma grande civilização tropical e para enveredar por caminhos europeus. Para se vingar Vei manda um forte calor, que estimula a sensualidade do herói e o lança nos braços de uma uiara traiçoeira, que o mutila, fazendo com que ele perca de novo a muiraquitã, mas dessa vez sem a possibilidade de recuperá-la.
Macunaíma é, sem dúvida, uma das melhores expressões do Modernismo no Brasil. A fúria demolidora que caracterizou a primeira fase do nosso Modernismo está em todos os sentidos nesse romance/rapsódia. Vejamos agora as principais características do nosso Modernismo em Macunaíma:

1.    Caráter anárquico/destruidor: O livro não apresenta coerência no que se refere a tempo, a espaço, a ação e a personagens. No aspecto linguístico não existe melhor exemplo do que a genial "Carta pras icamiabas"[2], em que Mário de Andrade, parodiando a literatura epistolar produzida no Brasil, no período da colonização, satiriza o distanciamento entre a língua escrita e a falada: "Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual e tão prodigiosa, que falam numa Iíngua e escrevem noutra".
2.    Valorização da língua falada: O Modernismo simplificou a prosa adotando o uso da linguagem cotidiana. A prosa despojou-se do artificialismo europeizante, tentando aproximar-se da língua oral. Deste modo, é freqüente em Macunaíma o uso de expressões coloquiais tais como: "– Meu avo, dá caça pra mim comer?"; "Não vim no mundo para ser pedra"; "– Me acudam que sinao eu mato! me acudam que sinão eu mato!". - Como mostrou Cavalcanti Proença, no seu Roteiro de Macunaíma, "a maioria dos chamados erros da linguagem popular brasileira são sobrevivências do antigo falar e escrever que ciaram em desuso".
3.    Busca de elementos brasileiros: Ressaltamos anteriormente os objetivos que defendiam a primazia dos valores e elementos brasileiros. Entretanto, contrariamente ao Romantismo, o Modernismo teve tratamento crítico, e idealizado. Assim, o movimento modernista gira em torno do Brasil, de seus problemas, da realidade brasileira, do homem brasileiro. Macunaíma não passa de "um símbolo da nossa amorfia e da nossa maturidade como povo e como cultura", segundo Cavalcanti Proença, "Ele (Mário de Andrade) criara Macunaíma como um ataque às desvirtudes nacionais, acumulando e exagerando os defeitos que reconhecia sofrendo, no brasileiro. Acabou configurando um tipo nacional que, pela acumulação de baixezas, o irritava."
4.    Influência vanguardista: O Dadaísmo e o Surrealismo são dois movimentos perfeitamente compatíveis com o mundo do subconsciente, que encontrou expressão própria na literatura, por meio de criações ilógicas. É o que ressalta, a propósito de Macunaíma, Cavalcanti Proença: "Em verdade Macunaíma não pode ser analisado pela lógica, está fora do bem e do mal, é um herói verdadeiro, às vezes contraditório, e isto Mário notou. " - Em livre associação, o escritor junta todas as peripécias do herói, cujo caráter se modifica sempre.
5.    Linguagem abrasileirada: As piadinhas indecorosas, bem próprias do gosto brasileiro, aparecem em Macunaíma. É o caso das "três adivinhas" que a filha da caapora Ceiuci faz a Macunaíma, tentando salvá-lo da gula da mãe. Leia agora o trecho que se refere a essa passagem.

      – Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: "É comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente?
      – Ah! isso é indecência sim!.
      – Bobo! É macarrão!
      – Ahn... É mesmo! Engraçado, não?
      – Agora o que é o que é: Qual o lugar onde as mulheres tem cabelo mais crespinho?
      – Oh, que bom! isso eu sei! é ai!
      – Cachorro! É na África, sabe!
      – Me mostra, por favor!
      – Agora é a última vez. Diga o quê que é:
      Mano, vamos fazer
      Aquilo que Deus consente:
      Ajuntar pêlo com pêlo,
      Deixar o pelado dentro.
      E Macunaíma:
      – Ara! Também isso quem não sabe! Mas ca pra nos que ninguém nos ouça, você é bem senvergonha, dona!
      – Descobriu. Não é dormir ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que você está imaginado? Pois si você não acertasse pelo menos uma das adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu."
     
Ainda no tocante a linguagem, Mário de Andrade usa o folclore lingüístico brasileiro. Em Macunaíma, além do vocabulário regional, há uso freqüente de frases feitas e provérbios. Elencaremos abaixo, seguindo o trabalho de Cavalcanti Proença, alguns fatos lingüísticos da nossa oralidade que levaram Macunaíma a afirmar na "Carta pras Icamiabas" que no Brasil "falam numa língua e escrevem noutra":
1.    Uso do verbo fazer como vicariante: "No outro dia Paui-Pódole quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da nossa terra, fez".
2.    Uso de brincar como expressão de ato sexual: "O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria"
3.    Coletivo com o verbo no plural (silepse): "Maanape deu as garrafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de fumo do Acará pra caapora e o casal esqueceram que havia mundo".
4.    Troca de tratamento (vós-tu): Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não."
5.    Uso do pronome reto como oblíquo: "Pra consolar levaram ele passear na máquina automóvel."
6.    Uso de mim como sujeito do infinitivo: "Minha avó, da aipim pra mim comer?"
7.    Emprego de verbos de movimentos com a preposição em: "A princesa foi no roçado, Maanape foi no mato e Jegue foi no rio."
8.    Substituição do verbo dizer por falar: "Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova".
9.    Uso do verbo pedir com a preposição para: "No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite".
10. Emprego do verbo ter por haver: "As garruchas inda estão muito verdolengas porém vamos a ver se tem alguma temporã".
11. Uso da preposição de nas locuções com dever: "O herói teve um desejo danado de brincar com a princesa porém Oibê já devia de estar estourando por aí."
12.  Uso do gerúndio em vez do infinitivo com a: "Depois afastou os mosquitos e principiou contando um caso."
13. Intensidade verbal por meio da duplicação: "Isso Macunaíma ficava que ficava um leão querendo".
14.  Virar em vez de transformar-se: Então ele virou na formiga quem- quem e mordeu Iriqui pra fazer festa nela".
15.  Uso da forma antiga diz-que: "Água fria diz-que é bom para espantar as vontades".
16.  Uso do diminutivo com valor de superlativo: "Macunaíma passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma urupema carregadinha de rosas".
17. Emprego de negativa dupla: "Tu não é mais curumi, rapaz, tu não e mais curumi não..."
18.  Posposição da negativa: "Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém, pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz".
19.  Uso do pronome no início da frase: "Se lembrou de ofender a mãe do Gigante com uma bocagem novinha, vinda da Austrália'"
20. Emprego enfático do prefixo des: "Macunaíma sentiu-se desinfeliz e teve saudades de Ci a inesquecível".

Enfim, a mensagem que subjaz à leitura do livro é a de que o Brasil possui uma cultura rica e que deveria voltar-se a ela para que possa se afastar do estigma de colônia.
Como contista, os trabalhos mais significativos de Mário de Andrade acham-se em Belazarte e Contos Novos. O primeiro livro mostra a preocupação do autor em denunciar as desigualdades sociais, já sofrendo as influencias da fundação do Partido Comunista no Brasil em 1929. O segundo se constitui de textos esparsos, reunidos em publicação póstuma, mas traz os contos mais importantes, como "Peru de Natal" e "Frederico Paciência".
Mário de Andrade morreu de ataque cardíaco aos 51 anos.
  
Oswald de Andrade (1890-1954)

A obra de Oswald de Andrade talvez seja a única, dentre as dos autores da primeira fase, a reunir todas as características que marcaram a produção literária do período. Paulista, de família rica, Oswald cursa Direito e ingressa na carreira jornalística. Em 1911, funda a revista semanal O Pirralho, que, com Alcântara Machado e Juó Bananère, dirige até 1917, quando é fechada. 
  Um dos aspectos revolucionários de sua obra foi a transformação de textos do período colonial em poemas que assumem uma conotação crítica da história oficial do Brasil.
Em toda a produção poética de Oswald de Andrade observa-se o autor como um expoente da primeira fase do Modernismo: o humor misturado ao lirismo, a piada e a imaginação, os lugares-comuns usados poeticamente, a fala popular, a caricatura da retórica, a ironia.
A obra Memórias Sentimentais de João Miramar, de 1924 é vista por muitos críticos como a primeira grande realização da prosa modernista. O livro é composto por 163 capítulos que se assemelham mais a episódios de estrutura fragmentária, cujos capítulos assemelham-se mais a flashes, fragmentos de realidade. Oswald inaugura assim a estética do romance montado em blocos, sem linearidade discursiva, rompendo com os esquemas tradicionais da narrativa.
O eixo do texto é João Miramar, os capítulos são curtíssimos, e sugerem impressões subjetivas do personagem principal. Leia abaixo alguns dos pequenos capítulos da obra e veja como rompe definitivamente com a estrutura narrativa que vimos até agora.

1. O PENSIEROSO
Jardim desencanto O dever e procissões com pálios E cônegos Lá fora E um circo vago e sem mistério Urbanos apitando nas noites cheias Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas.
O Anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido vermelhava.
Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém[3].

Observe, aluno, como Oswald, nesse texto, deixa que as descrições do personagem sejam interpeladas por um outro discurso, o discurso das suas impressões. Nessa parte, o menino na igreja, rezando, é atravessado por seu pensamento que se volta para as pernas das mulheres.

3 . GARE DO INFINITO
Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.
No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai[4].

A propósito da morte do pai, o personagem, confuso diante de suas tristes emoções, faz uma descrição do jantar repleta de sinestesias estranhas, como desabar do jantar e a voz toda preta. O autor tenta criar a dimensão do desarranjo das emoções do personagem diante de situações prosaicas.

8. FRAQUE DO ATEU
Saí de D. Matilde porque marmanjo não podia continuar na classe com meninas.
Matricularam-me na escola modelo das tiras de quadros nas paredes alvas escadarias e um cheiro de limpeza.
Professora magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um bigode de arame espetado no grande professor Seu Carvalho.
No silêncio tique taque da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza.
Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o Inferno.

Veja, caro aluno, a narrativa ganha dinamicidade a medida em que o personagem sente-se feliz e é mais arrastada em palavras quando se entristece ou enraivece. Assim, a aula da professora magrinha que João Miramar gosta e o recreio sucedem-se naturalmente, enquanto que a aula de Seu Carvalho já começa espetada, por seu próprio bigode. O personagem termina por levar suas emoções pra casa, onde exclui o professor de tudo aquilo que é natural e bom e termina por mandá-lo para o inferno.

16. BUTANTÃ
Prima Nair que estava interna com as irmãs bochechudas Célia e Cotita noutro colégio mandou uma carta ao Pantico dizendo assim: "Já sabes que estou na classe amarante? As meninas aqui não são tão maliciosas como no internato de Miss Piss. Mas. . . nunca vi que espírito civilizado elas têm. Pois como elas não têm moços para namorar elas namoram-se entre si. Todas têm um namorado como elas dizem e é uma outra menina: uma faz o moço e outra a moça.
E quando elas se encontram, se beijam como noivos. Por mais que não se queira ficar como elas, inconscientemente fica-se. As meninas de agora não são como as de outro tempo. Logo nascerão sabendo. Uma de seis anos não é inocente; já têm desde pequenas aqueles olharezinhos que mais tarde servirá para a malícia.
Eu só comecei saber a vida aos dez anos. Hoje em dia com sete já se sabe tudo!".

Além da narrativa fragmentária, não podemos esquecer que Oswald tratou de temas bastante tabus para a época, como as relações homossexuais entre mulheres que são descritas nesse fragmento e até encaradas com certa naturalidade pela personagem, que se julga mais tola diante do que as meninas mais novas sabem. 


[1] Grifos nossos.
[2] Cf. cap. IX
[3] Grifos nossos.
[4] Grifos nossos.