A Ambiguidade: o alicerce do Barroco
A estética literária do Barroco opõe-se diretamente ao racionalismo
clássico. O rigor formal, usado para produzir clareza, soma-se à ambiguidade de figuras que culminam em tensão e conflito.
A linearidade
renascentista é substituída pelo pictórico das antíteses, contradições e
paradoxos, e a sintaxe
simples é substituída pelo rebuscamento que se apoia no anacoluto
e na inversão sintática.
O exagero reflete o desconforto de um homem
dividido entre
o céu e as coisas
terrenas, evidenciando o conflito entre
os valores da tradição, ligados à consciência medieval e defendidos pelos
jesuítas , e os valores
gerados pelo avanço do
racionalismo.
O quadro
"A dúvida de São Tomé", do pintor italiano Caravaggio,
ilustra bem esse
panorama do mundo
Barroco, mostrando a religiosidade na figura de Cristo, de quem vem toda a luz
da cena composta pelo jogo do Ciaro/Escuro, característico da
pintura barroca, em oposição ao racionalismo presente na dúvida de São Tomé,
que chega a tocar a ferida de Jesus para se certificar.
Segundo Benjamim Abdala Júnior e Samira Youssef Campedelli, é possível
perceber vários estilos dentro do Barroco .
Alguns dizem respeito
à forma , outros ,
ao conteúdo .
Observe a tabela abaixo, em que esses estilos estão expostos:
Estilos
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Características
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É o
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Culteranismo,
cultismo
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Cultivou
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Conceptismo
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Ligado à prosa barroca e contrário ao
culteranismo. Buscou o
|
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Originou o rococó. Possui
|
Características da produção literária
As raízes
do Barroco se encontram no Renascimento. Como no Classicismo, os artistas
também buscavam a perfeição formal, mas de maneira exagerada. A literatura
barroca é marcada pelo rebuscamento da linguagem e pela sobrecarga de figuras
de estilo como a metáfora, a alegoria, a hipérbole e a antítese.
Referências
à cultura grega ainda aparecem, mas a ideia do pecado e do perdão torna-se uma
obsessão. O tema carpe diem
(aproveite a vida, o momento), por exemplo, tão explorado pelos gregos, volta à
tona. Contudo, aproveitar a vida implica em prazer, que por sua vez implica em
pecar. Quantas dúvidas sofria o artista barroco! Como cultuar a vida e o prazer
sem pecar? Como manter os ideais renascentistas de valorização do ser humano sem
ofender a Deus?
Como já
dissemos, toda essa tensão e esse conflito acabam sendo expressos por meio da
arte barroca, na qual muitos tentavam conciliar as tendências opostas. Segundo
o professor Massaud Moisés:
“[...] era o
empenho no sentido de conciliar o claro e o escuro, a matéria e o espírito, a
luz e a sombra, visando anular pela unificação a dualidade do ser humano,
dividido entre os apelos do corpo e os da alma.” (MOISÉS, 2006, p.73).
Poesia barroca
§ fugacidade da vida e das coisas, tudo é efêmero;
§ carpe
diem;
§ a morte, expressão máxima da efemeridade;
§ erotismo;
Por outro lado, a
ambigüidade barroca faz aflorar outras temáticas na lírica, tais como:
§ castigo, como decorrência do pecado;
§ arrependimento e busca do perdão;
§ narração de cenas trágicas;
§ sobrenaturalidade;
§ misticismo.
A poesia barroca
corresponde muito mais ao culto da forma do que do conteúdo, ou mesmo do
sentimento lírico. Com pouca representatividade, os poetas portugueses sofrem
grande influência espanhola. Podemos citar Francisco Rodrigues Lobo (1579-1621),
um dos mais importantes discípulos de Camões. Influenciado por Gôngora, é
considerado o iniciador do Barroco em Portugal.
Veja a seguir um soneto
barroco de Francisco Rodrigues Lobo:
Observe:
trocadilho: “te
vejo e vi, me vês agora e viste”;
antítese:
triste/contente; contente/descontente; mal/bem.
Veja também as incertezas do eu lírico quanto ao seu futuro.
Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.
A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!
Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!
Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.[1]
Surgem nesta época, em Portugal, as Academias, nas quais os poetas se reuniam para discutirem sobre a
estética barroca. Outros autores que podemos citar são: D. Francisco Manuel de
Melo, Frei Luís de Sousa, Sóror Mariana Alcoforado e o dramaturgo Antônio José
da Silva.
Vale ressaltar que a escrita ainda era um privilégio da
nobreza e do clero, uma vez que a burguesia iniciava-se nessa área. Ao povo,
como havia de se esperar, era negado o acesso à escrita e aos bens culturais
das elites.
Gregório de Matos
Os sonetos da tradição gregoriana encenam uma lógica de
fundamentação teológica, também aplicada pelo Pe. Vieira: um todo metafísico
que está em toda parte, simultaneamente, e uma parte desse todo que, por ser
divina, é perfeita e indivisível, contendo, dessa forma, um todo em qualquer
parte. Vejamos os sonetos:
Ao Braço do Mesmo Menino Jesus Quando Apareceo
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.
Ao menino Jesus de N. Senhora das Maravilhas, a quem infiéis
despedaçaram achando-se a parte do peyto.
Entre as partes do todo a melhor parte
Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo
Se na parte do peito o quis pôr todo,
O peito foi foi do todo a melhor parte.
Parta-se pois de Deus o corpo em parte,
Que a parte, em que Deus ficou o amor todo
Por mais partes, que façam deste todo,
De todo fica intacta essa só parte.
O peito já foi parte entre as do todo,
Que tudo mais rasgaram parte a parte;
Hoje partem-se as partes deste todo:
Sem que do peito todo rasguem parte,
Que lá quis dar por partes o amor todo,
E agora o quis dar todo nesta parte.
O Beletrismo Seiscentista e Setecentista, isto é, o Barroco, é
mais que uma expressão estética de um tempo; é a representação de uma forma de
ver o mundo e é a forma como este mundo se vê. A poesia encena, em antítese, a culpa, mas reafirma o desejo. Como vemos no poema abaixo,
atribuído a Gregório de Matos:
Ao Mesmo Assumpto e na Mesma Occasião
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
[1]
LOBO, Francisco Rodrigues In MOISÉS,
Massaud. A literatura portuguesa através
dos textos. São Paulo: Cultrix, 2006,
p. 163.