
Desde 1912, quando Oswald de Andrade volta de sua viagem à Europa, as ideias vanguardistas têm sido disseminadas e deglutidas em terras tupiniquins.
A Semana de Arte Moderna aconteceu durante os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Cada dia da Semana foi dedicado a um tema: pintura e escultura, poesia e literatura e, por fim, música. Apesar de ser conhecida como a Semana da Arte Moderna, as exposições aconteceram somente nesses três dias.
A primeira fase
A primeira fase
Na primeira fase são afirmados os pressupostos estéticos do
movimento, conforme Mário de Andrade elencaria em 1942, em O movimento modernista:
1) “o direito permanente à pesquisa estética”;
2) “a atualização da
inteligência brasileira”;
3) “a estabilização de uma consciência criadora
nacional”.
O ponto comum que reúne os escritores da primeira fase do
Modernismo no Brasil é a abordagem crítica
e nacionalista da realidade
brasileira, na tentativa de reerguer a cultura brasileira e eliminar o complexo de colonizado.
Aqui encontramos uma literatura que se guiava por manifestos, como na
literatura vanguardista. Esses manifestos interessam-nos à medida que constroem um texto que
expõe as características literárias do movimento.
No Prefácio Interessantíssimo, que
encabeça o livro Pauliceia Desvairada,
de 1922, Mário de Andrade constrói seu manifesto revelando os pontos de contato
da literatura moderna brasileira e as vanguardas, embora adote uma postura de
irreverência absoluta.
Vejamos um
trecho do texto e como suas ideias são diretivas, pois mostram tudo o
que se quer para a literatura moderna que começa a se erigir e tudo o que não
se quer.
O Prefácio,
expressa o difícil compromisso de conjugar a orientação moderna à realidade
local, à "língua brasileira". Anunciando o "desvairismo" –
a incongruência, a extravagância, a excentricidade – firma sua resistência em
relação às doutrinas artísticas: "Em arte: escola = imbecilidade de muitos
para a vaidade de um só". O texto é repleto de um posicionamento de
subjetividade extremada, assumindo assim a ruptura com o clássico.
“Dans mon pays de fiel et d’or
j’en suis la loi” (E. Verhaeren)
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me
aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão o prazer em descobrir minhas
conclusões, confrontando obra e dados. Para que me rejeita trabalho perdido
explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
Quando sinto a
impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois:
não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste
Prefácio Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a
blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
E desculpem-me por estar tão atrasado dos movimentos
artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só
vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si
pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.
Não sou futurista
(de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contacto com o futurismo. Oswald de
Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência
do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do
mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me
pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiram minhas idéias (que
nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto
ridicularizaram meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar,
como indiferente de Watteau.
Um pouco de teoria?
Acredito que o
lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso,
cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com
acentuação determinada.
A inspiração é
fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte,
que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira
do estado lírico para avisa-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe
que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições
fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou
inexpressivos.
Que Arte não seja porém limpar versos de exageros
coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como sonho. Por ele vida e
sonho se irmanaram. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de
expressão.
"O vento senta no ombro das tuas velas" Shakespeare. Homero já
escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas você deve
saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório -
questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural - tem a
eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir a natureza, nem
este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas,
Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis de Brás Cubas), ora
inconscientemente (a grande maioria), foram deformadores da natureza. Donde
infiro que o belo artístico, tanto mais subjetivos quanto mais se afastar do
belo natural. Outros
infiram o que quiserem. Pouco me importa.
O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo
que esta dissesse: "Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o
argumento mais forte, guarde-o para o fim!" A turba é confusão aparente.
Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o impotente desenvolver-se dessa
alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações. Minhas
reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embricá-la nas minhas
verdades filosóficas e religiosas, não convencionais como a Arte, são verdades. [...]
Escrevo brasileiro. Si uso
ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma
ortografia.
Escrever arte moderna não significa jamais para mim
representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto.
Si estas palavras freqüentam-me o livro é porque pense com elas escrever
moderna, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.
Mas todo este prefácio, com todo a disparate das teorias
que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi "Paulicéia
Desvairada" não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que
cantei, que ri, que berrei... Eu vivo!
Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se,
urram-se, choram-se Quem não souber cantar não leia Paisagem nº 1. Quem não
souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião.
Desprezar: A Escalada. Sofre: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do
berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não
continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.
E está acabada a
escola poética "Desvairismo".
Próximo livro
fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola=imbecilidade de
muitos para vaidade dum só.
Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio
Interessantíssimo. "Toda canção de liberdade vem do cárcere".
No Manifesto Pau-Brasil, 18 de
março de 1924, Oswald de Andrade ironiza e critica a visão oficial da história
brasileira, contrapondo-a a uma visão paródica e bem-humorada. Faz apologia à
literatura e, sobretudo, à poesia brasileira que agora deve ser considerada de exportação. Leiamos um trecho:
A
poesia existe nos
fatos . Os casebres
de açafrão e de ocre
nos verdes
da Favela , sob
o azul cabralino, são
fatos estéticos .
O
Carnaval no Rio
é o acontecimento religioso
da raça . Pau-Brasil .
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro
e nosso . A formação
étnica rica .
Riqueza vegetal .
O minério . A cozinha .
O vatapá , o ouro
e a dança .
O
lado doutor .
Fatalidade do primeiro
branco aportado e dominando
politicamente as selvas selvagens . O bacharel .
Não podemos deixar
de ser doutos .
Doutores . País
de dores anônimas, de doutores anônimos .
O Império foi assim .
Eruditamos tudo . Esquecemos o gavião de penacho .
A nunca
exportação de poesia . A poesia
anda oculta nos
cipós maliciosos
da sabedoria . Nas lianas
da saudade universitária .
Mas houve um estouro
nos aprendimentos. Os homens que
sabiam tudo se deformaram como borrachas
sopradas. Rebentaram. A volta à
especialização. Filósofos fazendo filosofia ,
críticos , critica, donas
de casa tratando de cozinha .
A
Poesia para
os poetas . Alegria
dos que não
sabem e descobrem.
Uma
sugestão de Blaise Cendrars : - Tendes
as locomotivas cheias ,
ides partir . Um negro gira a manivela
do desvio rotativo
em que estais. O menor
descuido vos
fará partir na direção oposta ao vosso
destino .
A
língua sem
arcaísmos , sem
erudição . Natural
e neológica. A contribuição milionária de todos
os erros . Como
falamos. Como somos.
Uma
única luta
- a luta pelo
caminho . Dividamos: Poesia de importação . E a Poesia
Pau-Brasil , de exportação .
Já em 1928, Oswald lança o Manifesto Antropófago, uma resposta ao
nacionalismo do grupo Anta, que propõe a devoração cultural da literatura e das
técnicas literárias importadas, sobretudo da Europa, para que se possa absorver
suas qualidades, tal qual nos rituais antropofágicos indígenas.
Tupy,
or not tupy that is the question.
Estamos fatigados de todos os maridos
católicos suspeitosos
postos em
drama . Freud acabou com
o enigma mulher
e com outros
sustos da psicologia
impressa .
O que
atrapalhava a verdade era
a roupa , o impermeável
entre o mundo
interior e o mundo
exterior . A reação
contra o homem
vestido . [...]
Nunca fomos catequizados.
Fizemos foi Carnaval . O índio
vestido de Senador
do Império . Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas
de Alencar cheio de bons
sentimentos portugueses. [...]
Se Deus
é a consciência do Universo
Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes . Jaci é a mãe
dos vegetais . [...]
É preciso
partir de um profundo ateísmo
para se chegar à idéia de Deus . Mas o caraíba não
precisava. Porque tinha
Guaraci.
O objetivo
criado reage como
os Anjos da Queda .
Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso ?
A alegria
é a prova dos nove .
No matriarcado de
Pindorama.
[...]Porém, só as puras elites
conseguiram realizar a antropofagia
carnal , que
traz em si
o mais alto
sentido da vida
e evita todos os males
identificados por Freud, males catequistas. O que
se dá não é uma sublimação
do instinto sexual .
É a escala termométrica
do instinto antropofágico. De carnal , ele se torna eletivo e
cria a amizade .
Afetivo , o amor . [...]É preciso
expulsar o espírito
bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte .
Oswald de Andrade
Como podemos observar, a marca dessa primeira fase é a dicotomia
integradora, pois contém simultaneamente o desejo e o projeto formal inovador
ao lado da proposta de resgate dos elementos da cultura tradicional. Concilia linguagens
importadas das vanguardas modernistas europeias, com um conteúdo nativista que
resgata as raízes culturais brasileiras.
Mário de Andrade (1893-1945)
Um dos criadores do Modernismo no Brasil, Mário Raul de Morais
Andrade nasceu em São Paulo, cidade que retratou em vários textos. Músico
formado pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde também
lecionou. Aos vinte anos , com o pseudônimo de Mário Sobral, publicou seu
primeiro livro, Há uma gota de sangue em
cada poema, no qual fazia críticas à carnificina da Primeira Guerra Mundial
e defendia a paz. Alguns meses após a Semana de 22, publicou Paulicéia desvairada, que incluía a discussão teórica sobre a
poesia, “Prefácio Interessantíssimo”, tão importante quanto as poesias do livro-texto teórico sobre a modernista.
Na prosa,
Mário produziu um dos mais importantes romances da literatura brasileira do
século XX: Macunaíma, o herói sem nenhum
caráter, publicado em 1928. O romance redefine a figura do herói e do
brasileiro, pela marca do indefinível.
Também
produziu o romance Amar, verbo
intransitivo, que causou grande impacto à época ao tratar da iniciação
sexual de um adolescente, cujo pai contrata uma governanta com esta finalidade,
a de iniciar sexualmente o filho. Nessa obra retrata a vida burguesa na grande
São Paulo.
A ficção de
Mário de Andrade também revela uma preocupação com técnicas vanguardistas e
incorpora à sua linguagem expressões idiomáticas, extraídas das diversas
incursões pelo interior do Brasil, o que confere a sua obra originalidade e
define sua empresa por uma língua brasileira.
Macunaíma, a que Mario de Andrade chamou rapsódia, e não romance, pois foi construído
através de colagens de músicas, cantigas, lendas e ditos populares, ou seja,
uma composição feita pelo processo de justaposição. Segundo informa
João Luiz de Lafetá, "a rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter,
foi escrita por Mário de Andrade, na sua primeira versão, em alguns poucos dias
do mês de dezembro de 1926”. O livro seria editado em 1928, depois de quatro
redações, segundo carta ao crítico Tristão de Ataíde, o que se deve aos longos
estudos sobre mitologia indígena e sobre o folclore nacional, realizados pelo
escritor durante vários anos, além de profundas observações sobre os costumes e
a língua cotidiana dos brasileiros.
Seu
personagem, Macunaíma, já existia em lenda ameríndia coletada pelo alemão
Theodor Koch-Grünberg em Vom Roraima zum
Orinoco. Esse personagem é um esboço do perfil do brasileiro comum, com
seus defeitos e virtudes, passando inclusive pelas três etnias que compõem a
formação da sociedade brasileira, a saber: o índio, o negro e o branco e por
ser a maior obra em prosa da primeira fase, trataremos dela aqui com maior
cuidado.
Leia agora,
aluno, um trecho do início da obra.
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa
gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que
silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Para Haroldo de
Campos, o livro é uma "história de busca" e se compõe de dois grandes
movimentos. No primeiro, temos a "situação inicial", em que são apresentados
o herói Macunaíma, sua mãe e seus irmãos, Maanape e Jiguê, índios tapanhumas,
vivendo às margens do rio Uraricoera. Mas a maior parte do livro se passa em
São Paulo, e é constituída pelos diversos embates de Macunaíma com Venceslau
Pietro Pietra. No final desse primeiro movimento, de acordo com a divisão
proposta por Haroldo de Campos, Macunaíma consegue matar o gigante e recuperar
o amuleto, partindo de volta para o Uraricoera.
O segundo movimento relata o antagonismo entre
Macunaíma e Vei, a deusa-sol, que oferecera ao herói uma das suas três filhas
em casamento. Macunaíma, entretanto, enamora-se de outra, perdendo a
possibilidade de casamento e aliança com Vei. Como o próprio Mário de Andrade
explicou, é uma alegoria dos destinos do Brasil, que abandonara as
possibilidades de construir uma grande civilização tropical e para enveredar por
caminhos europeus. Para se vingar Vei manda um forte calor, que estimula a
sensualidade do herói e o lança nos braços de uma uiara traiçoeira, que o
mutila, fazendo com que ele perca de novo a muiraquitã, mas dessa vez sem a
possibilidade de recuperá-la.
Macunaíma é, sem dúvida, uma das melhores expressões
do Modernismo no Brasil. A fúria demolidora que caracterizou a primeira fase do
nosso Modernismo está em todos os sentidos nesse romance/rapsódia. Vejamos
agora as principais características do nosso Modernismo em Macunaíma:
1.
Caráter anárquico/destruidor:
O livro não apresenta coerência no que se refere a tempo, a espaço, a ação e a
personagens. No aspecto linguístico não existe melhor exemplo do que a
genial "Carta pras icamiabas"[2],
em que Mário de Andrade, parodiando a literatura epistolar produzida no Brasil,
no período da colonização, satiriza o distanciamento entre a língua escrita e a
falada: "Ora sabereis que sua riqueza de expressão intelectual e tão
prodigiosa, que falam numa Iíngua e escrevem noutra".
2.
Valorização da língua falada: O Modernismo
simplificou a prosa adotando o uso da linguagem cotidiana. A prosa despojou-se
do artificialismo europeizante, tentando aproximar-se da língua oral. Deste
modo, é freqüente em Macunaíma o uso de expressões coloquiais tais como: "–
Meu avo, dá caça pra mim
comer?"; "Não vim no mundo
para ser pedra"; "– Me acudam que sinao eu mato! me acudam que sinão
eu mato!". - Como mostrou Cavalcanti Proença, no seu Roteiro de Macunaíma,
"a maioria dos chamados erros da linguagem popular brasileira são
sobrevivências do antigo falar e escrever que ciaram em desuso".
3.
Busca de elementos brasileiros: Ressaltamos anteriormente
os objetivos que defendiam a primazia dos valores e elementos brasileiros.
Entretanto, contrariamente ao Romantismo, o Modernismo teve tratamento crítico,
e idealizado. Assim, o movimento modernista gira em torno do Brasil, de seus
problemas, da realidade brasileira, do homem brasileiro. Macunaíma não passa de
"um símbolo da nossa amorfia e da nossa maturidade como povo e como
cultura", segundo Cavalcanti Proença, "Ele (Mário de Andrade) criara
Macunaíma como um ataque às desvirtudes nacionais, acumulando e exagerando os
defeitos que reconhecia sofrendo, no brasileiro. Acabou configurando um tipo
nacional que, pela acumulação de baixezas, o irritava."
4.
Influência vanguardista: O Dadaísmo e o Surrealismo
são dois movimentos perfeitamente compatíveis com o mundo do subconsciente, que
encontrou expressão própria na literatura, por meio de criações ilógicas. É o
que ressalta, a propósito de Macunaíma, Cavalcanti Proença: "Em verdade
Macunaíma não pode ser analisado pela lógica, está fora do bem e do mal, é um
herói verdadeiro, às vezes contraditório, e isto Mário notou. " - Em livre
associação, o escritor junta todas as peripécias do herói, cujo caráter se
modifica sempre.
5.
Linguagem abrasileirada: As piadinhas indecorosas,
bem próprias do gosto brasileiro, aparecem em Macunaíma. É o caso das
"três adivinhas" que a filha da caapora Ceiuci faz a Macunaíma, tentando
salvá-lo da gula da mãe. Leia agora o trecho que se refere a essa passagem.
– Vou dizer três adivinhas, si você
descobre, te deixo fugir. O que é que é: "É comprido roliço e perfurado,
entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente?
– Ah! isso é
indecência sim!.
– Bobo! É
macarrão!
– Ahn... É
mesmo! Engraçado, não?
– Agora o
que é o que é: Qual o lugar onde as mulheres tem cabelo mais crespinho?
– Oh, que
bom! isso eu sei! é ai!
– Cachorro!
É na África, sabe!
– Me mostra,
por favor!
– Agora é a
última vez. Diga o quê que é:
Mano, vamos
fazer
Aquilo que
Deus consente:
Ajuntar pêlo
com pêlo,
Deixar o
pelado dentro.
E Macunaíma:
– Ara!
Também isso quem não sabe! Mas ca pra nos que ninguém nos ouça, você é bem
senvergonha, dona!
– Descobriu.
Não é dormir ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro
que você está imaginado? Pois si você não acertasse pelo menos uma das
adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei
expulsa, voarei pro céu."
Ainda no tocante a linguagem, Mário de Andrade usa
o folclore lingüístico brasileiro. Em Macunaíma, além do vocabulário regional,
há uso freqüente de frases feitas e provérbios. Elencaremos abaixo, seguindo o
trabalho de Cavalcanti Proença, alguns fatos lingüísticos da nossa oralidade
que levaram Macunaíma a afirmar na "Carta pras Icamiabas" que no
Brasil "falam numa língua e escrevem noutra":
1.
Uso do verbo fazer como vicariante: "No outro
dia Paui-Pódole quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da
nossa terra, fez".
2.
Uso de brincar como expressão de ato sexual: "O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria"
3.
Coletivo com o verbo no plural (silepse): "Maanape
deu as garrafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de fumo do Acará pra
caapora e o casal esqueceram que havia mundo".
4.
Troca de tratamento (vós-tu): Agora vossa mãe
vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não."
5.
Uso do pronome reto como oblíquo: "Pra
consolar levaram ele passear na máquina automóvel."
6.
Uso de mim como sujeito do infinitivo: "Minha avó,
da aipim pra mim comer?"
7.
Emprego de verbos de movimentos com a preposição em: "A princesa foi no roçado, Maanape foi no mato e Jegue foi no
rio."
8.
Substituição do verbo dizer por falar: "Nesse
instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova".
9.
Uso do verbo pedir com a preposição para: "No outro
dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a
boca-da-noite".
10. Emprego do verbo ter por haver: "As garruchas inda estão muito verdolengas porém vamos a ver se tem
alguma temporã".
11. Uso da preposição de nas
locuções com dever: "O herói teve um desejo danado de brincar
com a princesa porém Oibê já devia de estar estourando por aí."
12. Uso
do gerúndio em vez do infinitivo com a: "Depois afastou os mosquitos e
principiou contando um caso."
13. Intensidade verbal por meio da
duplicação: "Isso Macunaíma ficava que ficava um leão
querendo".
14. Virar
em vez de transformar-se: Então ele virou na formiga quem- quem e mordeu
Iriqui pra fazer festa nela".
15. Uso
da forma antiga diz-que: "Água fria diz-que é bom para espantar as
vontades".
16. Uso
do diminutivo com valor de superlativo: "Macunaíma passeava passeava e
encontrou uma cunhatã com uma urupema carregadinha de rosas".
17. Emprego de negativa dupla: "Tu não é mais curumi, rapaz, tu não e mais curumi não..."
18. Posposição
da negativa: "Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém, pretume
foi-se e antes fanhoso que sem nariz".
19. Uso do pronome no início da frase: "Se lembrou de ofender a mãe
do Gigante com uma bocagem novinha, vinda da Austrália'"
20. Emprego enfático do prefixo
des: "Macunaíma sentiu-se desinfeliz e teve
saudades de Ci a inesquecível".
Enfim, a
mensagem que subjaz à leitura do livro é a de que o Brasil possui uma cultura
rica e que deveria voltar-se a ela para que possa se afastar do estigma de
colônia.
Como contista, os trabalhos mais significativos de Mário de
Andrade acham-se em Belazarte e Contos Novos. O primeiro livro mostra a
preocupação do autor em denunciar as desigualdades sociais, já sofrendo as influencias
da fundação do Partido Comunista no Brasil em 1929. O segundo se constitui de
textos esparsos, reunidos em publicação póstuma, mas traz os contos mais
importantes, como "Peru de Natal" e "Frederico Paciência".
Mário de Andrade morreu de ataque cardíaco aos 51 anos.
Oswald de Andrade (1890-1954)
A obra de Oswald de Andrade talvez seja a única, dentre as dos autores
da primeira fase, a reunir todas as características que marcaram a produção
literária do período. Paulista, de família rica, Oswald cursa Direito e
ingressa na carreira jornalística. Em 1911, funda a revista semanal O Pirralho, que, com Alcântara Machado e
Juó Bananère, dirige até 1917, quando é fechada.
Um dos aspectos revolucionários de sua obra foi a transformação de
textos do período colonial em poemas que assumem uma conotação crítica da
história oficial do Brasil.
Em toda a produção poética de Oswald de Andrade observa-se o autor como um expoente
da primeira fase do Modernismo: o humor misturado ao lirismo, a piada e a
imaginação, os lugares-comuns usados poeticamente, a fala popular, a caricatura
da retórica, a ironia.
A obra Memórias Sentimentais de João Miramar,
de 1924 é vista por muitos críticos como a primeira grande realização da prosa
modernista. O livro é composto por 163 capítulos que se assemelham mais a episódios
de estrutura fragmentária, cujos capítulos assemelham-se mais a flashes,
fragmentos de realidade. Oswald inaugura assim a estética do romance montado em
blocos, sem linearidade discursiva, rompendo com os esquemas tradicionais da
narrativa.
O eixo do texto é João Miramar, os capítulos são curtíssimos, e sugerem
impressões subjetivas do personagem principal. Leia abaixo alguns dos pequenos
capítulos da obra e veja como rompe definitivamente com a estrutura narrativa
que vimos até agora.
1. O
PENSIEROSO
Jardim desencanto O dever e
procissões com pálios E cônegos Lá fora E um circo vago e sem mistério Urbanos
apitando nas noites cheias Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do
oratório de mãos grudadas.
O Anjo do Senhor anunciou à
Maria que estava para ser a mãe de Deus.
Vacilava o morrão do azeite
bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido vermelhava.
Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres
não têm pernas, são como o manequim de mamãe até embaixo. Para que pernas nas
mulheres, amém[3].
Observe, aluno, como Oswald, nesse texto, deixa que
as descrições do personagem sejam interpeladas por um outro discurso, o
discurso das suas impressões. Nessa parte, o menino na igreja, rezando, é
atravessado por seu pensamento que se volta para as pernas das mulheres.
3 . GARE
DO INFINITO
Papai estava doente na cama e
vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para uma casa velha
que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na
janela.
No
desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do
Anjo que carregou meu pai[4].
A propósito da morte do pai, o personagem, confuso
diante de suas tristes emoções, faz uma descrição do jantar repleta de
sinestesias estranhas, como desabar do jantar e a voz
toda preta. O autor tenta criar a dimensão do desarranjo das emoções do
personagem diante de situações prosaicas.
8. FRAQUE
DO ATEU
Saí de D. Matilde porque
marmanjo não podia continuar na classe com meninas.
Matricularam-me na escola
modelo das tiras de quadros nas paredes alvas escadarias e um cheiro de
limpeza.
Professora
magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um bigode de arame espetado
no grande professor Seu Carvalho.
No
silêncio tique taque da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque
Deus era a natureza.
Nunca
mais vi o Seu Carvalho que foi para o Inferno.
Veja, caro aluno, a narrativa ganha dinamicidade a
medida em que o personagem sente-se feliz e é mais arrastada em palavras quando
se entristece ou enraivece. Assim, a aula da professora magrinha que João
Miramar gosta e o recreio sucedem-se naturalmente, enquanto que a aula de Seu
Carvalho já começa espetada, por seu próprio bigode. O personagem termina por
levar suas emoções pra casa, onde exclui o professor de tudo aquilo que é
natural e bom e termina por mandá-lo para o inferno.
Prima Nair que estava interna
com as irmãs bochechudas Célia e Cotita noutro colégio mandou uma carta ao
Pantico dizendo assim: "Já sabes que estou na classe amarante? As meninas
aqui não são tão maliciosas como no internato de Miss Piss. Mas. . . nunca vi que
espírito civilizado elas têm. Pois como
elas não têm moços para namorar elas namoram-se entre si. Todas têm um namorado
como elas dizem e é uma outra menina: uma faz o moço e outra a moça.
E quando elas se encontram, se
beijam como noivos. Por mais que não se queira ficar como elas,
inconscientemente fica-se. As meninas de agora não são como as de outro tempo.
Logo nascerão sabendo. Uma de seis anos não é inocente; já têm desde pequenas
aqueles olharezinhos que mais tarde servirá para a malícia.
Eu só comecei saber a vida aos
dez anos. Hoje em dia com sete já se sabe tudo!".
Além da narrativa fragmentária, não podemos
esquecer que Oswald tratou de temas bastante tabus para a época, como as
relações homossexuais entre mulheres que são descritas nesse fragmento e até
encaradas com certa naturalidade pela personagem, que se julga mais tola diante
do que as meninas mais novas sabem.